domingo, 8 de fevereiro de 2015

O Anti-Clichê - Parte II

Cena do filme "Cova Rasa" de Danny Boyle

Era um domingo insosso, pendurado entre a euforia do sábado e a melancolia da segunda. Seria mais um dia esquecível, a não ser por aquele arcaico Gol Quadrado que já despertava olhares curiosos na vizinhança, devido ao percurso repetitivo e a velocidade vagarosa com que se locomovia. Os pneus inquietos refletiam a ansiedade de Anibal. Já havia localizado a formosa residência da Rua 3 de Maio, todavia, antes do reencontro, resolveu vislumbrar as enormes casas do bairro nobre. Bando de burgueses hipócritas!

Finalmente estacionou o carro, observou um Honda Civic e uma Land Rover do lado de fora da espaçosa garagem. Encharcou o pano branco com o clorofórmio que havia adquirido ilegalmente, escondeu-o no bolso traseiro de sua calça jeans desbotada e desceu do Gol. Ao chegar ao portão, uma imensidão de pensamentos adentrou sua mente e sentiu o corpo paralisar por lépidos segundos, até que retomou a consciência e apertou o botão do interfone. Uma voz metálica, porém doce, emergiu daquela caixa eletrônica.

- Quem é?

- Sara? Sou eu... Anibal...que estudou com você no colégio Santa Maria.

Um silêncio célere, porém excruciante, cobriu de gelo a barriga de Anibal

- Ah Ani! É você! Meu Deus! Quanto tempo! Vou abrir o portão! Entre!

Os portões se abriram paulatinamente e Anibal percorreu a pequena estrada de tijolos, como se andasse sobre um arco-íris, cuja recompensa o aguardava no final. De encontro a ele, Rafael e Sara caminharam com passos levemente apressados. Abraços calorosos de Sara, um aperto de mão mais contido de Rafael e a surpresa de Anibal ao constatar que, ao contrário da sua aparência desgastada, eles mantiveram a essência de suas jovialidades. Que belo casal! Seria ainda mais belo morto!

A coloração dos lábios, a textura da pele, as ligeiras marcas de expressão em volta dos olhos, os cabelos reluzentes, a barba emergente, o perfume levemente amadeirado, os corpos saudáveis e, ainda, sedutores... Tudo era analisado por Anibal com um minimalismo cirúrgico. Enquanto isso, o casal tentava omitir a estranheza ao encarar um homem que nem sombra fazia ao jovem radiante de outrora.

- Temos muito o que conversar Ani! - A voz inconfundível de Rafael ainda arrepiava Anibal.

Iriam almoçar e, naturalmente, convidaram Anibal para o banquete. Era inevitável não notar a abissal disparidade entre aqueles sofisticados cômodos e o cubículo em que ele morava. Em meio a conversas redundantes, sentaram-se à mesa de mogno e iniciaram a refeição, que a empregada do casal havia preparado. Anibal agia com total espontaneidade, inflando o ego do casal, despejando risos expansivos e evitando imergir nas irresoluções do passado.

- Rapazes, vocês vão me dar licença, mas preciso ir ao banheiro.

Sara se retirou e foi até o banheiro no final do corredor, enquanto Anibal a observava atentamente. Era o sinal, era a chance dele. Preciso ser rápido e silencioso! Pediu licença, disse que iria observar a varanda e direcionou, imperceptivelmente, seus passos para as costas desguarnecidas de Rafael, segurou o pano e o pressionou com força no rosto dele. Quando o instinto de autoproteção de Rafael esboçou alguma reação, seus sentidos já haviam se esvaído. Em seguida, consciente de que não teria tanto tempo até o despertar de Rafael, Anibal foi aguardar Sara do lado de fora do banheiro, quando ela abriu a porta, não teve tempo de notar os dois braços que a seguraram, um envolta do seu pescoço e outro com um pano úmido na mão.

Anibal tentava dissimular frieza na execução do seu plano, porém o coração pulsava como se tivesse recebido uma dose letal de adrenalina e a barriga estava cada vez mais gélida. No entanto, as lembranças dos psicopatas insensíveis e calculistas dos filmes apaziguaram o nervosismo e o motivaram a buscar as algemas no carro, a utilizá-las no casal e a carregar cada corpo até o banco traseiro do Gol. Nossa...não pensei que...o Rafa...fosse tão pesado!

Antes de partir rumo ao prédio cinematográfico, assegurou-se de que a câmera de filmagem estava no porta-malas e com a bateria completa. Ele havia comprado o equipamento com a sua vizinha, que intencionava vender sua obsoleta câmera, já que havia adquirido uma moderna. Seu desassossego só não era maior do que os seus delírios de grandeza. Quantas visualizações o vídeo terá no Youtube?


Por Vitor Costa

17 comentários:

  1. Bom dia Vitor.. um descrição que de fato lembra muitas cenas de filmes..
    outro dia mesmo vi um que o cara matava policiais do fbi e transmitia tudo ao vivo..
    números, sempre números né..
    esqueci o nome rsrs pra filmes não sou bom.. mas é muito legal.. no fim ele se ferra.. a morte dele que é filmada pois a detetive conseguiu se livrar da armadilha..
    tenha um lindo dia garoto fique sempre bem

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    1. Grande e lúcido poeta, muito pertinente sua observação, se não me engano, o nome do filme é 15 minutos com Robert DeNiro.
      Grande Abraço Samuel, obrigado pelo comentário.

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  2. Vi seu safadinho --' Não gostei disto de deixar a galera curiosa com um conto tão instigante quanto este. Amigo, ficou maravilhoso, e eu quero mais *.* Cadê o resto? rs Gostei da mudança do personagem pelo trauma de outrora, adoro quando uma alfinetada desencadeia imensuráveis destruições, e mesmo que não haja tanto sangue, a alma dele já se corrompeu. Essa narração está convidativa, parabéns *----*

    Estive meio ausente dos comentários, fiquei doente e tal, só mobile. Mas acompanhei seu últimos posts, e agora voltei!
    xoxoxo
    Até mais rs

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    1. Haha A ideia inicial era escrever uma história só, caro Washington, porém, acredito que ficaria muito longo e publicar em partes é uma estratégia para aumentar o gosto pela história, espero que tenha conseguido isso com você ;-) Que bom que gostou!!!

      Mas, acredito que esteja melhor agora certo? Foi algo preocupante?
      Grande abraço amigo.

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  3. Poxa, leva o maior jeito pra essas narrativas, de tirar o fôlego, Vitor! Prende o leitor com habilidade, sequioso do próximo capitulo. Suspense eletrizante! Abraços, Cara!

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    1. Grande Fábio! obrigado pelos sempre sinceros e alentadores elogios, dá gosto ver que um exímio escritor como você, admira os meus contos.
      Abraços

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  4. Como sempre muito habilidoso e caprichoso com as narrativas, Vitor, parabéns. Estou, assim como os outros leitores, ansiosa pela continuação.
    Gostaria de ter comentado antes, mas não deu. Beijo.

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    1. Imagina Carol, o importante é que você conseguiu comentar e expressar a sua tão preciosa opinião! É uma grande satisfação que esteja gostando ;-)
      Beijos

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  5. Muito boa as descrições, bem detalhadas, puxando a gente pra dentro da trama, sem a gente nem perceber.

    Um megalomaníaco com sede de vingança? Ah, já estou curiosa pra saber o que vem a seguir.

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    1. Que bom que está gostando Rosa, isso me deixou muito animado para escrever o resto!!
      Sua opinião sobre o final seria de extrema importância para mim
      Beijos

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  6. Caaaaaaaara
    pera, antes deixa eu fazer um comentário nada a ver por causa da imagem que você usou: Cova Rasa é um dos meus filmes mais queridinhos <3

    Agora SOBRE O SEU TEXTO: por acaso eu estava com essa música no repeat quando comecei a ler a parte 1: https://www.youtube.com/watch?v=8rggntDwCdY

    E por acaso, a faixa teve super a ver com o clima sensual da primeira fase do seu seu conto. Pra segunda parte, dei play na música do post mesmo. Requiem for a Dream <3

    E então, acho que não preciso dizer que eu amei o tema. O triângulo amoroso mal resolvido, a paixão visceral - e acho que vi um pouco de você no personagem. A família dele são os filmes e a verdade é que ele seria capaz de fazer qualquer coisa uma vez que se imaginasse dentro de um deles.
    Vai ter parte 3????

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    1. Eu adoro Cova Rasa também Mari, é um filme que está crescendo com o tempo. Para todos que recomendo, ninguém ficou insatisfeito com o filme. ^^

      Puts, combina perfeitamente com a parte I, Mari, se eu tivesse escutado antes, certamente eu colocaria como fundo para a primeira parte, excelente som ;-)

      Só estou usando a trilha do Requiem for a dream que, na minha opinião, possui uma das trilhas mais perturbadoras e marcantes da última década. Que bom que você gosta! ;-)

      O fato da família dele ter sido os filmes realmente tem muito a ver comigo, além do desejo de fazer algo original para o cinema, subvertendo os clichês. Mas, é só isso, eu ainda não participei de um triângulo amoroso hahaha

      Vai ter sim, inclusive já escrevi e se você pudesse ler e dar sua tão esperada opinião, eu adoraria ;-)

      Beijos

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  7. 1: acabei de ligar pra minha irmã e descrever detalhadamente o seu conto, ela amou e vai ler assim que chegar em casa kkkkkkkkkkk

    2: li seu comentário no meu blog, e sabe de uma coisa, você tem razão. Digo, vendo do lado "massacres escolares" me pareceu muito revoltante, e talvez por isso eu não tenha parado pra pensar no "ponto de vista: estudo da psicopatia" e aí sim, fica até interessante.

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    1. 1: POxa, que foda!! Por favor, me diz o que ela achou da história ^^

      2: Opa, que legal ler isso Mari, é que eu enxergei o filme desse jeito, mas o seu texto também tem muita lógica. Realmente se formos analisar o filme como a representação de um massacre escolar ele é bem inverossímil

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  8. Ai, ai, ai, Vitor. Não pare assim! Quero maais! ahauaha
    Eu fico aqui numa expectativa enorme, se fosse um livro viraria a noite, porque eu fico altamente presa!!
    Sua narrativa prende! Parabéns. Até breve!

    beijoo'o

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    1. Sensacional ler isso Simone, é um grande sonho escrever um livro ou uma série de contos, e seu comentário me enche de alento ;-)
      Calma, a última parte já está publicada hauahua adoraria uma opinião sobre o fim polêmico kkkk
      Beijos

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