Cena do filme "Pânico" de Wes Craven
O canto dos pneus, o velocímetro inquieto, o preponderante suor na camisa verde-escura e sem estampas, os semáforos que pareciam intermináveis e, propositalmente, vermelhos. Anibal nunca havia dirigido tão rápido na vida e ofendido tanta gente no trânsito. Os corpos no banco traseiro balançavam e se chocavam entre si quando o Gol percorria as curvas sinuosas do trajeto, era uma bagunça de braços e pernas que acentuava a apreensão de Anibal.
Freou bruscamente, os corpos inconscientes atingiram o chão do carro e ficaram empilhados, Rafael em cima de Sara. Anibal observou a cena por uma fração de segundos, imaginando os corpos nus naquela posição, porém, logo balançou a cabeça apagando os possíveis pensamentos intempestivos, desceu do carro como um raio, certificou-se de que não havia olhos ao redor, carregou Sara até o elevador, cujo improvável funcionamento foi assegurado por ele um dia antes. Realizou o mesmo procedimento com o corpo atlético de Rafael e, posteriormente, buscou a câmera. Ofegando como um asmático, juntou-se a eles no elevador e apertou o botão do sétimo andar.
O Reinício do Filme
Em suas programadas posições, estão o herói vulnerável, a mocinha indefesa e o vilão armado. Os tímidos feixes de luz de uma preguiçosa tarde de domingo insinuam invadir as janelas e iluminar um pouco mais o cenário sombrio, porém, a luz da câmera possui uma intensidade suficientemente eficaz para a visibilidade do filme.
Uma sensação de vertigem misturada a uma dor de cabeça aguda sinalizam a retomada de consciência de Rafael e Sara. A partir daí, a confusão, a revolta e a incompreensão imperam no comportamento do casal, resultando em uma sucessão desesperada de frases inevitáveis que deleitam os ouvidos de Anibal. Por que está fazendo isso com a gente? Você não precisa fazer isso! Por favor, não nos mate!
Para evitar que a gritaria prossiga, Anibal desfere um chute no estômago de Rafael e ameaça matá-lo, caso Sara não permaneça calada. Agora é a minha vez de falar, vadia!
Anibal, ensandecido pelo ódio e alucinado por filmes, fita a lente da câmera e começa a despejar discursos retóricos acerca da sua conduta:
- Boa tarde querido público! Hoje vocês testemunharão um verdadeiro filme de terror, talvez o mais assustador das suas vidas! Mas, antes preciso destruir algumas expectativas. Percebam que eu poderia ser um vilão descuidado, como a maioria é, e ter fornecido condições para que o herói, apontando para o atônito Rafael, escapasse e criasse cenas tensas, como uma luta emocionante, cujo desfecho o espectador mais atento já presumiria, ou seja, seria muito fácil que, em um mero momento de distração tola da minha parte, ele focasse nesse pequeno fio de aço, semelhante a um grampo, perto das mãos dele, deslocasse sutilmente o seu corpo ferido para alcançá-lo e o utilizasse para se libertar das algemas. Uma vez livre, ele exploraria os resquícios das suas forças e se jogaria contra mim, iniciando uma disputa empolgante de socos e chutes aos olhos inundados da mocinha, os dedos trêmulos procurando por Sara,...
Nesse instante, Anibal fita a janela, silencia por alguns segundos, volta o seu olhar para a câmera e prossegue com a sua frenética epifania cinematográfica:
- Diante de tantas possibilidades medíocres, odeio especialmente aquela, na qual a luta se estenderia para perto daquela janela e o herói, realizando uma manobra audaciosa e precisa, me acertaria um belo chute no peito, me empurrando de tal forma que não poderia conter a direção da janela e da, consequente, queda, porém, antes que eu caísse, eu me penduraria na borda da janela. Nesse momento, ele se aproximaria sobre mim, seria dominado por uma compaixão ilógica, provavelmente decorrente das lembranças da nossa adolescência, e tentaria me erguer de volta para o prédio, e eu, desprovido de qualquer vestígio de caráter, me apoiaria nele e tentaria uma reviravolta. No entanto, percebendo minhas desonestas intenções, ele, finalmente, me largaria para a morte certa. Que tal esse desfecho pavoroso, hein?
Totalmente consumido por seus devaneios, Anibal ainda infere:
- Uma terceira, mas igualmente estúpida hipótese, seria se eu tivesse uma crise de consciência, ao estar pendurado e sentindo a iminência da morte, e implorasse ao herói por perdão, ele aceitasse e desejasse me salvar, porém, eu diria conformado: "Não posso ser salvo, amigo." E, em seguida, soltaria deliberadamente meus dedos da borda da janela. Seria o cúmulo do clichê, mas vocês adorariam, pois seriam dominados por uma sensação satisfatória, uma sensação de que o bem, no final das contas, sempre vence o mal, de que o mal não é irreversível e de que a vida vale a pena.
A intenção de Anibal é subverter o gênero de terror e torná-lo mais imprevisível e real do que nunca, pois, segundo suas convicções, na vida não existe uma tensão convenientemente prolongada, não há perseguições mirabolantes, não há heróis que sejam capazes de escapar de uma situação de morte certa e, principalmente, não existe a necessidade do vilão ser derrotado. A verdadeira fonte do terror advém da imprevisibilidade, pensa ele.
Para Anibal, porém, assassinar Rafael e Sara significa muito mais do que uma transgressão fílmica, representa um acerto de contas definitivo com o passado, o restabelecimento do equilíbrio, da paz que o abandonou há tanto tempo.
- Como podem ser felizes sem mim? Éramos perfeitos juntos! - Anibal não contém o desabafo enjaulado no peito.
- Não somos felizes Ani! Sentimos sua falta todo esse tempo! Não paramos de pensar em você um só dia! Que tal se recomeçarmos? - A voz frágil de Sara não convence nem a ela mesma.
- É verdade, Ani! Queremos você de volta! - Rafael, oportunamente, reitera a esposa.
- O pior dos clichês seria se eu me deixasse convencer por essa mentira escancarada e confiasse em vocês, como confiei em 82. Chega de palavras inúteis, o filme deve terminar!
Anibal encara a câmera com um olhar intrépido e um tom severo:
- Agora quero que vocês expulsem de suas mentes quaisquer delírios de esperança. Eles não irão escapar. Esse é meu filme e eu não preciso acatar aos interesses do mercado. Esse será o fim da história, sem surpresas, sem milagres... Portanto...
Um tiro letal na testa de Rafael, despertando um grito estrondoso de Sara que perfura os tímpanos de Anibal, e o faz reagir instintivamente com outro disparo, direto no coração dela. Logo depois, um silêncio devastador irrompe sobre aquele cenário. A câmera passa minutos gravando um Anibal, assustadoramente, inerte e com o olhar fixo nos dois corpos, que um dia amou mais do que a si mesmo, inanimados e banhados de sangue.
Repentinamente, Anibal sente um asco corrosivo invadir sua corrente sanguínea e chegar ao seu córtex cerebral. Então, segura a arma contra seu crânio, a respiração dispara e, de tão intensa, fere o tórax, as lágrimas se esboçam e quando a bala no cérebro parece inevitável, uma faísca súbita de pensamento emerge da sua mente, abaixa a pistola, o coração se acalma, seca os olhos, recorda-se do filme e indaga para a câmera.
Repentinamente, Anibal sente um asco corrosivo invadir sua corrente sanguínea e chegar ao seu córtex cerebral. Então, segura a arma contra seu crânio, a respiração dispara e, de tão intensa, fere o tórax, as lágrimas se esboçam e quando a bala no cérebro parece inevitável, uma faísca súbita de pensamento emerge da sua mente, abaixa a pistola, o coração se acalma, seca os olhos, recorda-se do filme e indaga para a câmera.
- O suicídio do vilão também seria um enorme clichê, não seria?
Em seguida, encerra a gravação.
Fim
Por Vitor Costa
Ah! Até que enfim o final, estávamos ansiosos, Vitor.
ResponderExcluirGostei, como sempre, da narrativa, da forma que descreveu os pensamentos, emoções e sentimentos de Annibal. Porém... fiquei decepcionada, confesso. Achei que seriam mortes mais planejadas, aquelas torturas que causam asco e nos fazem revirar os olhos... bem hard, sacas? Mas, não deixou de ser um ótimo final, é claro.
A música ficou show, combinou com o conto. Beijo!
Finalmente né Carol, pensando melhor, essa estratégia de publicar em partes é eficiente para agarrar o leitor, porém, aumenta muito as expectativas sobre o final, talvez isso tenha acontecido com você rs
ExcluirEu não enxergo sadismo nos atos de Anibal e penso que seria um pouco incoerente se ele torturasse gratuitamente as pessoas, que no fundo, bem no fundo, ele ainda sentia algo, mas admito que a ideia é tentadora e pensei em colocar uma dose extra de sangue, nojeira, asco, etc... rsrs E também o desejo de Anibal (ou meu desejo) era criar um final anticlímax que frustrasse propositalmente as expectativas, por isso entendo sua decepção rs
Muito obrigado por comentar e acompanhar de perto as 3 partes ;-)
Beijos querida
Muito bom o conto! Narrativa nada monótona, me fazendo ler aos poucos cada uma das três partes, querendo saber logo o final... E ótimo final, quando vi que ele tava prestes a se suicidar pensei "mas isso é clichê po", e a resposta estava logo embaixo que você fez jus ao título.
ResponderExcluirÓtimo blog!
Beijos.
Que bom que a história te prendeu e te agradou Lu, é sempre muito bom quando alguém novo visita o blog e faz um comentário interessante sobre o texto. Seja bem-vinda e pode ter certeza que irei visitar seu blog ;-)
ExcluirAnibal desejava ser qualquer coisa, menos clichê rsrs
Beijos
É um conto escrito em tres partes?
ResponderExcluirComecei pensando. Anibal? HANNIBAL HANNIBAL HANNIBAL CADE VOCE!!
hehehehe
desculpe fiquei meio perdida, mas talvez porque não acompanhei?
vou dar uma olhada e continuar acompanhando a agora :)
Um beijo!
Pâm - www.interruptedreamer.com
Sim, resolvi separar em 3 partes kkkk
ExcluirVocê pegou a referência então, não escolhi Anibal por acaso haha ;-)
Acompanhe sim, adoraria saber sua opinião Pâm!
Beijos
Baaaa! Sangue frio, objetividade, vingança. Ficou ótimo Vi, ter dividido em três partes foi para fazer o leitor sofrer, mas de fato valeu esperar *.*
ResponderExcluirMuito bom.
Passe bem amg
:*
Ahhhh muito obrigado caro Washington, suas palavras são inestimáveis!! ;-)
ExcluirAbraços
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirVitor, fui dar uma conferida na parte II, e agora acabo de ler este final.. Estou muito impressionada com o seu conto! Que trama intensa, com suspense na medida certa, além de conter uma boa descrição do sentimento de vingança do personagem.. E por este desfecho eu não esperava, achei bem original.
ResponderExcluirVocê precisa escrever mais contos!
Um grande abraço
Obrigado Vane, sempre bom receber seus comentários!! Fico muito feliz que tenha apreciado o texto e do desfecho também ;-)
ExcluirOpa, vou escrever sim ^^
Abraços
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ResponderExcluirReitero tudo que foi dito aqui pelos colegas leitores. Um conto original dentro do gênero, sem velhos, manjados e previsíveis clichês. Acho que você inovou. E nunca, o mocinho, a mocinha, morrem no final e o vilão é bem sucedido. Você não, digo, Anibal, matou-os sem piedade. Ótimo, multitalentoso, Vitor.
ResponderExcluirMuito obrigado caro Fábio! suas palavras me revigoram e me deixam motivado a escrever mais. Vindo de um artesão das palavras como você, esses elogios pesam muito!!
ExcluirGrande Abraço e passe bem.
Adoro contos assim, com finais inusitados, e sua escrita é dinâmica e gostosa de ler. Parabéns, Vitor!
ResponderExcluirConheça os blogs literários:
O Poeta e a Madrugada (Contos e Poesia)
Dark Dreams Project (Contos de suspense e terror)
Abraços!
Muito obrigado Dênis, você é um excelente escritor e fico lisonjeado de receber tais elogios ;-)
ExcluirO seu blog de poesias eu já conhecia, agora esse de contos obscuros me chamou a atenção, certamente irei visitar ^^
Abraços
Eu amo histórias de trisais, e amo suspense e terror. E anti clichês. Eu adorei ler esta série, pois você escreve de um jeito que prende, e é impecável. Obrigada por isto.
ResponderExcluirAlgumas coisas não mudam, ainda mais quando se trata de sentimentos, de ego e dos limites onde o ser humano pode chegar pelo que acredita.
Muito obrigado Dayane, que bom que gostou, é sensacional quando vemos que um grande esforço (combinado com prazer) alcançou o objetivo que idealizamos. Volte mais!! Gostei bastante do seu blog!!
ExcluirRealmente, há sentimentos que nunca mudam.
Por morar no sudeste do Brasil, ontem "ganhei" uma hora a mais. Sabe, virada do horário de verão para o horário de inverno... Daí aproveitei alguns minutinhos desse (precioso) tempo extra para ler as duas primeiras partes do seu conto, deixando o melhor para depois a fim de desfrutar o que eu já havia lido e permitir-me um certo suspense.
ResponderExcluirE o suspense valeu a pena! O anti-clichê conseguiu seu final espetacular. Eu só me pergunto o que será dele daí em diante... Que ele enlouqueça de vez me parece inevitável, apesar dessa hipótese ser, ironicamente, clichê.
Parabéns pelo conto! Você manda bem, garoto :)
Também sou do sudeste Lari ^^ e fico feliz que tenha reservado essa preciosa hora adicional para acompanhar as três partes.
ExcluirQue bom que a sua espera tenha valido a pena. O destino trágico de Anibal parece inevitável rsrs embora a possível publicação do filme, talvez, o tornasse famoso, vai saber kkk
Obrigado novamente e passe bem moça!!
Fábio, pare já de enrolar e vá logo escrever um livro de contos. Caraca! Tu mandou bem demais nessa estória, no suspense!
ResponderExcluirParabéns!
Beijos
Não sou o Fábio, Ariana, porém fico honrado de ser confundido com ele kkkkk
ExcluirAgradeço imensamente o incentivo, quero escrever sim, uma série de contos! E conto com pessoas inteligentes, como você, para lê-los ;-)
Beijos
Vítor, o conto, em todas as suas partes, me permitiu visualizar os personagens e lugares e sentimentos de uma forma quase concreta. Você foi excelente! O final, não poderia ter sido melhor, combinou com o título, criou um duelo com o desejo louco de Aníbal, e como você mesmo disse, nos mostrou que não há necessidade de o vilão ser derrotado pelo mocinho, sempre.
ResponderExcluirMuito, muito bom!!
beijão ;*
Muito obrigado Simone!! Fico feliz que tenha apreciado!!! É muito gratificante receber tua visita com mais frequência ^^
ExcluirBeijos
A música ajudou nesse clima de expectativa, suspense!
ResponderExcluirQue bom!! Eu amo essa música e o filme em que ela toca!! E sempre me deixa com uma tensão incômoda!
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ExcluirCARALHO VITOR, como assim
ResponderExcluirQ final mara! Justificou o nome do texto perfeitamente, ADOREI.
Quero mais textos divididos e blowing assim, foi uma adrenalina linda ler seu conto.
Eu não acredito que Anibal seja "o mau", na verdade, eu estava do lado dele.
E bem, todo esse lance de evitar o clichê, me lembrou um pouco o Ozzymandias quando ele diz que nunca contaria deu plano se houvesse a menos hance de ele ser parado. "Coloquei meu plano em açao 35 minutos atras".
Obs: sobre seu comentario no meu blog, cara, não se preocupe com as criticas. Na verdade, vc concordou com o meu texto. Eu escrevi aquele post pq penso dessa forma msm.
Muito obrigado Mari, estava aguardando a sua opinião sobre a derradeira parte, pois o que você diz vale muito pra mim. Saber, agora, que você curtiu pra caralho, faz meu coração vibrar hahaha Acho que vou fazer mais isso sim, gostei dessas divisões temporais rs
ExcluirNossa, verdade, me lembro disso, você e suas ricas lembranças de Watchmen ^^
Beijos Mari