quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Labirinto

Cena do filme "Pi" de Darren Aronofsky

Quando os dias e as noites se fundem em uma massa disforme e a razão se torna uma equação indecifrável, é um sinal de alerta para os enfermeiros.


Eles se camuflam nas paredes gris, nas portas de aço, nos lençóis brancos e nas camas velhas. São tão previsíveis quanto invisíveis. Eu imagino o que eles veem, eu mesmo me assustaria se me visse naquele estado.

A redundância dos dias, os lapsos de memória que me sugam para o abismo da incompreensão. É como se ao final do dia eu voltasse no tempo para a manhã do mesmo dia e me observasse acordando, apanhando, vomitando, enlouquecendo como agora e fosse totalmente impotente. Eu sou uma das inúmeras cópias inúteis de mim mesmo que não alteram o ciclo da minha insensatez, versões incapazes de resolver o enigma da minha loucura.

Eles se aproximam como borrões cinzas conscientes de que o meu fluxo racional está se esgotando. Não faço a mínima ideia do que estou fazendo, só sinto o meu teimoso corpo resistindo às injeções e, depois, perco os sentidos e retorno ao ponto de partida. Todos os dias são reproduções temporais do mesmo dia.

Quando o sono se separa do meu cérebro e migra para o desconhecido, levando consigo todos os sonhos possíveis, só me resta decifrar o que é real e o que é pesadelo. Juro que não sei se essas pessoas em chamas existem, se essas paredes de vidro, que me cercam, estão encolhendo, se os carros do lado de fora estão buzinando para mim. Quando se perde o senso da realidade, você se perde de si mesmo para os pesadelos que te dominam.

Outros borrões, mais injeções, mais repetições, mais ilogismo.

Há quanto tempo estou aqui? Será que ainda serei normal? Será que estou pensando ou falando alto?

Ainda há resquícios de memórias. Dentre tantos neurônios mortos, há alguns que armazenaram as lembranças do início do fim da minha sanidade e a imagem pálida que sempre se forma é a de um bisturi, a anestesia, o gosto do meu sangue, o cheiro do meu próprio tecido cerebral. Não consigo refletir sobre isso. Tudo é caos.

Os meus instantes racionais são tão esparsos e raros que nem pretendo escapar mais, que mal consigo planejar uma fuga, que me conformei em ser um prisioneiro da minha mente. Nas orlas da minha racionalidade, gosto de pensar que sou um viajante do tempo, que volta, diariamente, para o passado recente na esperança de encontrar alguma falha no padrão da vida e, quem sabe, voltar a sonhar.



 Por Vitor Costa


20 comentários:

  1. Muito bom! Me lembrou também de outros filmes: Um estranho no ninho e Bicho de sete cabeças.
    Aquele momento em que não se consegue mais discernir o que é real e o que loucura.
    Parabéns pelo conto. :)

    Meus blogs literários:
    O Poeta e a Madrugada (Contos e Poesia)
    Dark Dreams Project (Contos de suspense e terror)

    Abraços!

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    1. Obrigado pelo comentário Dênis, é uma honra saber que o meu texto te lembrou a obra-prima "Um Estranho no Ninho". "Bicho de Sete Cabeças" eu não vi ainda, mas deve ser muito bom.
      Obrigado amigo!

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  2. Me lembrou, Vitor, de um filme em que o cara todo dia acordava no dia anterior, sei lá o que houve, só sei que era assim, se tu souber o nome do filme me diz, pois é como tava comentando, o mesmo despertador toda manhã que tocava e logo após reproduzia a voz de um locutor local de um programa da cidade, as mesmas pessoas ao longo do dia iam se sucedendo no seu caminho, o garçom que lhe dava bom dia, coisa assim, o pedestre que tomava um banho de lama na passagem de um carro, o vendedor que lhe abordava na rua... Todo dia, sucessivamente, num ciclo absurdo, desesperador, interminável e irritante. Ate que uma hora que ele acordou no "presente", maior doideira, mas, interessante a imaginação. Abraços.

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    1. Esse filme se chama Feitiço do Tempo, Fábio e é com o genial Bill Murray. Eu tenho na minha coleção, trata-se de um filme sensacional. Uma honra ter despertado esta lembrança em você.
      Abraços caro.

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  3. Baa, o Dênis falou do Bicho de Sete Cabeças, e foi de fato a primeira coisa que me passou na mente rs O texto ficou ótimo, gosto da maneira como tu narra e dá a intenção de um paralelo, com real e surreal. Induz a imaginar o cenário, mas só os detalhes mostram que de fato imaginamos o mundo em que o persona está imerso.

    :D

    Fique bem, amg :D

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    1. Eu tenho que assistir a esse filme, faz tempo que está na minha lista Washington rsrs Muito obrigado pelas palavras, essa era a minha intenção mesmo, focar na desorientação do personagem diante de uma situação que nem ele compreende.
      Abraços amigo

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  4. Creio que eu deveria ter assistido ao filme da ilustração para entender melhor o texto, certo? Dei uma lida na sinopse aqui, parece ser bom.
    Mas mesmo assim, me vi em um cenário caótico, como se eu estivesse perdida em um grande labirinto cheio de rabiscos pelas paredes, sangue, alucinações atormentando a cabeça. Como se tudo fosse real, mas não passasse de uma grande mentira. Um ciclo ruim. Um dia ruim, e quando à noite há a esperança de um dia melhor, tudo começa outra vez.
    Você sempre diz que os meus textos te causam sensações, dessa vez tu que causou, em mim. Fiquei meio perdida, mas me imaginei como sendo o eu lírico e vivi tudo isso no pelo da pele arrepiada. Não canso de dizer que as tuas descrições são extremamente fiéis ao imaginário.
    Beijo, Vitor!

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    1. Então Carol, acho que isso não é necessário. Pouca coisa do texto vem especificamente desse filme, mas assista sim, é um filme bem diferente e insano kkk

      A minha intenção nem era que houvesse um entendimento do texto, é claro que várias interpretações são válidas, porém, meu foco foi expressar a desorientação de alguém perdido em si mesmo diante de uma situação incompreensível. Foi mais para ser sentido e fico feliz que tenha tido essas sensações, isso vale demais para mim ^^

      Beijão Carol

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  5. Nossa luta diária com nossa mente, às vezes quieta, às vezes sem paz. Somos nosso próprio labirinto. O exterior só intensifica o caos que nós mesmo criamos ou alimentamos.
    Cada vez gosto mais do que leio aqui!

    Beijão!

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    1. Pois é Simone, colocações muito sábias, como diz aquela frase: "O inferno somos nós."
      Muito obrigado e é sempre uma enorme satisfação recebê-la por aqui.
      Beijos

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  6. Parabéns pelo conto, Vitor! Sua escrita é instigante e muito bem construída, além de despertar-nos várias sensações.. Confesso que me senti no lugar do personagem, imaginando-me em sua agonia e em seu estado mental perturbado, entre uma tênue linha que separa a sanidade da loucura, e os sonhos da realidade..

    E o filme em questão (“Pi”), necessito assistir! Aronofsky é um ótimo diretor.. Lembro-me que ele dirigiu um de meus filmes favoritos, Requiem para um Sonho.

    Tenha um bom fim de semana :)
    Um grande abraço

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    1. Comentários sempre muito sensatos e precisos. Obrigado pelas palavras Vane, era isso mesmo que quis passar.

      Veja sim, Pi é o típico início despretensioso de todo grande cineasta e que muitas vezes se torna o seu melhor filme.

      Beijos

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  7. Não queria parar de ler. Maravilhoso !
    É terrível essa sensação de não mais se pertencer. Perdidos em nós mesmos. Um abraço Vitor

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    1. Uma sensação realmente terrível que desejo nunca passar!!
      Obrigado pelo comentário Milene, sempre bom te ver por aqui ^^

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  8. Essa questao das paredes de vidro, de romper com a realidade ser como estar assistindo tudo de uma tela. Não só romper, voce não precisa ser louco pra se sentir deslocado, claro. Tudo isso me lembra uma amiga minha que é esquizofrenica, ela esta em tratamento e esta tudo bem, mas me lembra os relatos dela. Rs
    Qd vamos escrver texto juntos de novo hein

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    1. Eu me baseei levemente nos relatos de um primo meu que teve esse problema e ficou um tempo internado. Hoje ele está muito bem, mas as descrições dele da época são angustiantes e terríveis.

      Interessante essa questão das paredes de vidro Mari, eu ainda não tinha enxergado por esse prisma... faz sentido!

      Quando você quiser ué!! Gostaria de escrever sobre o quê dessa vez Mari?

      Beijos

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  9. Este comentário foi removido pelo autor.

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  10. Denso e intenso, eu diria.
    Acho que o segredo não é tentar adivinhar o que você pensou e sim interpretar a ideia descrita de uma forma nova e singular.

    Olhando por esse lado, é muito promissor.

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    1. Obrigado Brunno.

      Pois é, não me apoiei muito na lógica para escrever esse texto, foi uma sensação que imaginei baseada nos relatos de alguém que já esteve em algo similar e nos filmes de hospícios.

      As interpretações distintas enriquecem o texto e fico grato de saber que você vê a possibilidade de enxergar o texto de outras formas.

      Abraços

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  11. "Quando se perde o senso da realidade, você se perde de si mesmo para os pesadelos que te dominam"
    (Desculpe-me. Tive que registrar a frase de novo, em comentário, porque ela é muito boa, cara!)

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