sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

O Anti-Clichê - Parte I

Cena do filme "Os Sonhadores" de Bernardo Bertolucci

Sétimo andar de um prédio decrépito, o chão de concreto repleto de buracos, os vidros quebrados, quase não há móveis e os poucos ali, já estão em decomposição. Imaginem o cenário de um filme de terror, um lugar soturno, lúgubre, sem eletricidade, sem qualquer sinal de conforto, um silêncio aterrador, somente cortado por pombos que, ocasionalmente, batem suas asas em direção às janelas destruídas. Há também uma predominante escuridão, amenizada, apenas, por uma luz estridente vindo de uma desgastada câmera de filmagem. 

O que um cidadão consciente estaria fazendo em um lugar tão insalubre como esse? Ou melhor, o que três pessoas comuns estariam fazendo ali, em um ambiente tão inóspito e intimidador? A resposta está alojada na mente de um deles e está perfeitamente clara, porém, até ela ser revelada há algo que vocês devem saber. 

1982, ano de Copa do Mundo com a melhor Seleção Brasileira da história, do esmorecimento da Ditadura Militar e do início da Redemocratização no país, todavia, o que importa para vocês agora é que esse foi o ano em que Rafael, Anibal e Sara se conheceram no austero colégio católico Santa Maria, localizado no interior de Minas Gerais. Eram três adolescentes absolutamente normais, inseguros e, razoavelmente, sociáveis. Naturalmente, tornaram-se amigos inseparáveis com juras de amizade eterna. Foi também nessa época que a libido invadiu aqueles corpos em transe e despertou uma desconhecida confusão. Ainda não chovia a banalização midiática do sexo como chove agora, então para aqueles jovens não havia sentido na ansiedade e carência que sentiam quando não estavam juntos na escola. Que sensação efervescente é essa?

Desse modo, o instinto, com seu habitual vigor, ensinou-lhes, desde cedo, a desejar alguém como um pedaço suculento de carne, e Rafael, Anibal e Sara construíram um laço indomável e invisível que logo tendeu para o inevitável contato. Os acanhados beijos eram seguidos por incessantes palpitações como aquelas quando desvendemos algo que mudará nossas percepções em definitivo. Era um sentimento disforme, porém imensurável, entre três seres que compartilhavam as mesmas descobertas. 

E, assim, o desejo se consumia em beijos cada vez mais frequentes, secretos e intensos, beijos que logo se verteram em sexo despudorado. Matavam aula para matar a sofreguidão, tocavam-se, exploravam-se, possuíam-se sem limites e o ato só era pleno se todos participassem, só se esqueceram de um detalhe: avisar essa regra ao tempo.

Os anos (es)correram, levando consigo a fidelidade do trio. À medida que foram amadurecendo, também foram estreitando suas escolhas e, para a desolação de Anibal, Sara optou por Rafael e Rafael por Sara. Ainda podemos ser amigos, né Ani? De uma só vez, ele havia perdido as duas pessoas que mais amava no mundo. Embora não percebesse naquele momento, ele também havia perdido o sentido da vida. Quando caiu em si, estava sem perspectivas, vivendo no piloto automático e envelhecendo 10 anos por mês. Então, fez o que costumava fazer quando a vida lhe parecia um suplício, apoiou-se na sua querida família, também conhecida como filmes.

Um apartamento minúsculo financiado por um salário irrisório em um emprego medíocre, esse era o lar de Anibal, cuja única satisfação era passar suas horas longe da miséria, por meio das histórias que lhe corriam os olhos na antiga TV de 20 polegadas. Aquelas que mais lhe excitavam eram as de terror, quanto mais sangue melhor. Esses filmes se desenvolvem bem, mas sempre naufragam em finais covardes! Foi assim que Anibal teve a maior ideia da sua vida...

Seu próprio filme, estrelando o casal mais amável do mundo e o vilão mais execrável da história do cinema. Enquanto isso, Rafael e Sara, já devidamente casados e com empregos de prestígio, moravam há 5 anos em Belo Horizonte e tinham uma elegante casa. 

Em outros tempos, seria uma tarefa árdua para Anibal, desvendar o paradeiro do casal, porém, nada que uma conversa no Facebook com uma antiga colega de escola não resolvesse. Ela residia perto deles e, inocentemente, forneceu o endereço da casa. Anibal gastou dias matutando sobre como executar seu plano e se realmente valeria a pena, até que reuniu uma valentia inexorável e partiu rumo à capital. Antes que pudesse chegar ao endereço correto, desfilou seu obsoleto Gol Quadrado pelas imediações em busca de um lugar completamente isolado, até que um edifício inacabado lhe chamou a atenção, claramente se tratava de uma obra abandonada e tão cedo não iria ser retomada. Esse lugar é perfeito!

O próximo passo era reencontrar Rafael e Sara. Será que clorofórmio funciona tão bem quanto nos filmes?

18 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Teu conto tem relação com o filme do qual retirou a ilustração, Vitor? Se disser que sim eu vou baixar para assistir, now.
    Consegui visualizar perfeitamente todo o desenrolar da trama, você como sempre com uma escrita fantástica e rica em detalhes, quase que um Aluísio Azevedo, risos.
    O que deixou o texto com um caráter misterioso e mais interessante ainda, foi a jogada de você ter feito uma inversão de papeis: o final do conto que, obviamente, encerra a primeira parte e nos deixa ansiosos pela segunda, ter justamente iniciado o texto. Pessoas curiosas como eu não gostarão disso, risos.
    Gostei do tema desencadeador também. É bem peculiar, eu diria, um triângulo amoroso que se inicia tão cedo.
    Como sempre você é brilhante, não canso de elogiar tua escrita, bah! Um beijo carinhoso.

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    1. Então Carol, faz muuito tempo que vi esse filme e os detalhes da trama não estão muito claros na minha mente, mas lembro que gostei bastante, eu recomendo, alguma relação tem.
      Nossa, que honra ser comparado a esse gênio, mas, convenhamos, ainda preciso comer muito arroz com feijão para chegar perto dele rs
      De início, toda essa trama do triângulo amoroso nem existiria, mas achei que ficaria interessante, que bom que gostou!!
      Beijos querida!!

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  3. vitor, que blog legal!!! recebi uma porra de energia na mente, meu irmão vi (Piccirillo) que me indicou,
    abraço e se quiser, da uma olhada no meu blog: http://danielpiccirillo.blogspot.com.br/

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    1. Valeu Daniel, fico feliz que o Vinny tenha te falado do blog, e ainda mais contente que você tenha gostado ;-)
      Vou dar uma olhada sim, grande abraço!!!

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  4. fui lendo e imaginando a narrativa. mas fui surpreendida pela época em que se passa, e por um trio de namorados (?). o inevitável, em triângulos, é que alguém saia sobrando [e machucado]. a consequência disso foi radical. curti o final. (mais um personagem louco). ^^... estava pensando se o filme citado na imagem tem algo relacionado com esse texto. serviu de inspiração? {Emilie Escreve}

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    1. Então Emilie, o filme foi uma das minhas inspirações, mas não foi a principal.

      Que bom que curtiu a história, sua opinião é sempre importante pra mim!!

      Beijos

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  5. Que conto surpreendente, Vitor! Sua narrativa é envolvente e muito bem detalhada, e a temática da trama é interessante..
    E este final em aberto faz-nos ansiar pela continuação!
    Além disso sua referência cinematográfica é excelente, 'Os Sonhadores' é um ótimo filme.
    Um grande abraço

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    1. Obrigado pelos comentários sempre articulados Vane.
      Estou trabalhando na continuação :-)
      Abraços

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  6. Que conto Vitor, menino prodígio! Faço minhas as palavras de Vane. Me deixou sem fôlego o desenrolar do texto em crescendo, suspense eletrizante e muito bem construido. Aplausos!

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    1. Muito obrigado Fábio! Sua opinião é sempre muito esperada e fico realmente feliz que tenha se sentido assim em relação ao conto!! Abração

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  7. Fiquei muito feliz ao saber que a sua visita foi uma indicação da Carol Russo, que sempre é uma fofa e cheia de opiniões verdadeiras a dar (além de ser destruidora com as palavras!).

    Confesso que não sou daquelas com críticas rebuscadas, técnicas e tudo mais... tudo que digo é puramente criação dos meus sentimentos e das minhas ideias desenfreadas. Tenho a te dizer que pude sentir a amargura da peça que sobrou nesse triângulo. Talvez eu mesma tenha problemas com abandono, trocas, ser deixada de lado...

    ao ler cada linha fui desenvolvendo quase um curta na minha cabeça. Daqueles de poucos diálogos e muitas imagens significativas, sabe?

    beijo
    beinghellz.blogspot.com

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    1. Concordo com o que disse sobre a Carol, ela é uma pessoa incrível!! ^^

      Tudo bem Hellz, a sua opinião, desde que seja sincera, é válida para mim e devo dizer que gostei bastante do seu comentário. É uma impressão bem interessante do conto, evocar imagens significativas em meio a um quase silêncio... ^^

      Beijos e volte mais! ;-)

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  8. Rsrs Clorofórmio funciona bem sim. Também já escrevi um conto baseado num filme que havia assistido e recordava vagamente da trama, mas não lembrar claramente é até um vantagem, pois diminui a influência que o filme pode ter sobre o conto. Ótimo texto, Vitor! Abraços.

    O Poeta e a Madrugada

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    1. Grande Girotto, que bom recebê-lo por aqui depois de tanto tempo! É mesmo? que legal, qual seria o filme que você se inspirou para escrever esse conto e também qual seria o nome do conto? Adoraria saber ^^ Sim, você tem razão, evita com que nos orientemos para a mesma trama do filme, o que seria repetir algo que já foi feito né rs

      Abraços poeta!

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  9. Ai, ai! Narrado dessa forma tão detalhada, tenho a sensação de estar presente no ambiente junto das personagens. Adorei!
    E sim, acho que o clorofórmio servirá ;))
    Quero mais!!^^

    Beijoo'o ;*

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    1. Obrigado pelo comentário Simone, sempre gratificante saber quando a história envolve o leitor!
      Você terá mais rs

      Beijos

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