domingo, 30 de agosto de 2015

Ciclo da Cana-de-Açucar por Thiago de Oliveira

Cena do filme "Eu, Tu, Eles" de Andrucha Waddington

Afastada de tudo o que existe de civilizado nesse mundo, aquela infinitude verde seguia tingindo de vida o que outrora era árido e morto, mas que hoje se tornara úmido e pantanoso. Imensidão. Assim deviam de estar pensando os belos tuiuiús que, por acaso, sobrevoavam a plantação no exato momento em que esta cena foi inventada. Verde-ardume da paisagem, canavial sem-fim, imponente enquanto houvesse braços e lâminas que o sustentasse. Para quem?

Repentina brisa. As plantas dançavam sincronizadas, como que aliviando a quentura que o sol a pino de meio dia lhes impusera, sem piedade. De alguma clareira daquele mar de canas-de-açúcar, vinha o som metálico e ritmado da ceifa, do corte. Trabalho maquinal das mãos, empunhando cabos e calos, movimento repetido, repetido… desde o dia mal amanhecido.

Era um grupo de pelo menos trinta. Na lida. Um golpe seco, queda. Cada caule cortado, uma vida a menos. Quantos golpes? Contou? Facão passava cantando. Cantigas secretas de antigamente (castigos, cativeiros…). Por aqui essas coisas continuaram. Mas, sem cansaço (e quem tem tempo?!), seguia a máquina-homem, movimento recorrente. Coceira. No corte da cana. Na lida. E o aroma do campo se espalhando: ô, doçura! E a amargura de uma vida daquelas…

Cortado, despedaçado, explorado.  Passivo, queimado pelo sol, devorado por bicho. Espécime vegetal em abundância. Fartura. Era a cana-de-açúcar. De nome e sobrenome: Saccharum officinarum L.. De nobreza, se bobear. Cintura fina, em forma de cilindro e com folhas grandes, tudo combinando. A casca lisa, avermelhada, sangue doce que alimenta insetos. E nós. E entrenós. E a folha emulando a navalha. Quem corta mais? Observava, curiosa, o labor sendo feito.

Parou para admirar a criatura autômata. Não conseguia diferenciar os espécimes, pareciam muito iguais, pela cor e pela roupagem. Camisas de mangas longas, surradas. Luvas improvisadas, com pano, palha, pasto. Calças, as mesmas, sempre. Rostos secos e sérios, quando não cobertos por pano. Cabelos desgrenhados, quando não cobertos por chapéu. Bolsa dependurada. Na mão - facão, enxada, foice. A perna inchada. Foi-se. Olhar distante, no espaço-tempo de suas existências. Sentiria dor? Agiria por instinto, apenas? Adaptariam-se facilmente a qualquer terreno? Qual o intuito dessa empreitada diária, infinita?

Pensou, então, que não eram tão diferentes assim, no destino e no sofrimento. A mesma navalha os decepava. As mesmas mãos os controlavam. O mesmo calor os ressecava. A mesma brisa os aliviava. Foi além, até. Considerou-se dono de melhor sorte, o vegetal. Alimentado. Cuidado. Apreciado…

Um ronco se aproximava, com cheiro de fumaça. Caldeira? Não, foi só um susto. Era o mesmo veículo de sempre, barulhento e desastrado. Parou de conjecturar. O ronco do motor, o ronco da barriga, sincronizados. Homem-máquina, sempre regulado. A natureza é perfeita…

Cessa o trabalho. Fila. Um a um se retira. Retirantes, um dia. E o silêncio da boca pra fora. E o caminhão vai embora. E a tarde também. Volta, aos poucos, a fauna fugidia. Arredia. Vida de verdade até o próximo dia.

O canavial. O mar sem-fim de verde. A imensidão. Questionando, em uníssono, o que seria do futuro. Qual seria o propósito da vida. O que seria da criatura-máquina, homem-reflexo, involuntário. Mas trataram de adormecer. Amanhã começa o ciclo novamente...

Ciclo da cana-de-açúcar.

Este texto é de autoria de um amigo que, da mesma forma que eu, enxerga na escrita um meio para libertar a mente. Gostei tanto desse texto que pedi a permissão dele para publicá-lo aqui. Felizmente, ele me concedeu e tenho a honra de compartilhá-lo com vocês. Boa leitura!

2 comentários:

  1. O texto ficou mesmo excelente: bem escrito, com uma visão crítica, muitos detalhes para imaginarmos a cena (com todo seu movimento). Seu amigo é, assim como você, um talentoso escritor!

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    1. Ficou né Lari! Já disse para ele que possui um grande talento, mas, ainda lhe falta um pouco de confiança. Vou procurar incentivá-lo mais!
      Obrigado pelo comentário! Beijos

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