Cena do filme "Eu, Tu, Eles" de Andrucha Waddington
Afastada de
tudo o que existe de civilizado nesse mundo, aquela infinitude verde seguia
tingindo de vida o que outrora era árido e morto, mas que hoje se tornara úmido
e pantanoso. Imensidão. Assim deviam de estar pensando os belos tuiuiús que, por acaso, sobrevoavam a
plantação no exato momento em que esta cena foi inventada. Verde-ardume da
paisagem, canavial sem-fim, imponente enquanto houvesse braços e lâminas que o
sustentasse. Para quem?
Repentina
brisa. As plantas dançavam sincronizadas, como que aliviando a quentura que o
sol a pino de meio dia lhes impusera, sem piedade. De alguma clareira daquele
mar de canas-de-açúcar, vinha o som metálico e ritmado da ceifa, do corte.
Trabalho maquinal das mãos, empunhando cabos e calos, movimento repetido,
repetido… desde o dia mal amanhecido.
Era um grupo
de pelo menos trinta. Na lida. Um golpe seco, queda. Cada caule cortado, uma
vida a menos. Quantos golpes? Contou?
Facão passava cantando. Cantigas secretas de antigamente (castigos,
cativeiros…). Por aqui essas coisas continuaram. Mas, sem cansaço (e quem tem tempo?!), seguia a máquina-homem,
movimento recorrente. Coceira. No corte da cana. Na lida. E o aroma do campo se
espalhando: ô, doçura! E a amargura
de uma vida daquelas…
Cortado,
despedaçado, explorado. Passivo,
queimado pelo sol, devorado por bicho. Espécime vegetal em abundância. Fartura.
Era a cana-de-açúcar. De nome e sobrenome: Saccharum
officinarum L.. De nobreza, se bobear. Cintura fina, em forma de cilindro e
com folhas grandes, tudo combinando. A casca lisa, avermelhada, sangue doce que
alimenta insetos. E nós. E entrenós. E a folha emulando a navalha. Quem corta mais? Observava, curiosa, o
labor sendo feito.
Parou para
admirar a criatura autômata. Não conseguia diferenciar os espécimes, pareciam
muito iguais, pela cor e pela roupagem. Camisas de mangas longas, surradas.
Luvas improvisadas, com pano, palha, pasto. Calças, as mesmas, sempre. Rostos
secos e sérios, quando não cobertos por pano. Cabelos desgrenhados, quando não
cobertos por chapéu. Bolsa dependurada. Na mão - facão, enxada, foice. A perna
inchada. Foi-se. Olhar distante, no espaço-tempo de suas existências. Sentiria dor? Agiria por instinto, apenas?
Adaptariam-se facilmente a qualquer terreno? Qual o intuito dessa empreitada
diária, infinita?
Pensou,
então, que não eram tão diferentes assim, no destino e no sofrimento. A mesma
navalha os decepava. As mesmas mãos os controlavam. O mesmo calor os ressecava.
A mesma brisa os aliviava. Foi além, até. Considerou-se dono de melhor sorte, o
vegetal. Alimentado. Cuidado. Apreciado…
Um ronco se
aproximava, com cheiro de fumaça. Caldeira?
Não, foi só um susto. Era o mesmo veículo de sempre, barulhento e
desastrado. Parou de conjecturar. O ronco do motor, o ronco da barriga,
sincronizados. Homem-máquina, sempre regulado. A natureza é perfeita…
Cessa o
trabalho. Fila. Um a um se retira. Retirantes, um dia. E o silêncio da boca pra
fora. E o caminhão vai embora. E a tarde também. Volta, aos poucos, a fauna
fugidia. Arredia. Vida de verdade até o próximo dia.
O canavial.
O mar sem-fim de verde. A imensidão. Questionando, em uníssono, o que seria do
futuro. Qual seria o propósito da vida. O que seria da criatura-máquina,
homem-reflexo, involuntário. Mas trataram de adormecer. Amanhã começa o ciclo novamente...
Ciclo da
cana-de-açúcar.
Este texto é de autoria de um amigo que, da mesma forma que eu, enxerga na escrita um meio para libertar a mente. Gostei tanto desse texto que pedi a permissão dele para publicá-lo aqui. Felizmente, ele me concedeu e tenho a honra de compartilhá-lo com vocês. Boa leitura!
O texto ficou mesmo excelente: bem escrito, com uma visão crítica, muitos detalhes para imaginarmos a cena (com todo seu movimento). Seu amigo é, assim como você, um talentoso escritor!
ResponderExcluirFicou né Lari! Já disse para ele que possui um grande talento, mas, ainda lhe falta um pouco de confiança. Vou procurar incentivá-lo mais!
ExcluirObrigado pelo comentário! Beijos