quinta-feira, 9 de julho de 2015

Teias

Cena do filme "O Homem Duplicado" de Denis Villeneuve

Lívia se sentia morta, encarcerada há anos naquela rotina, os mesmos movimentos e percursos com horários bem definidos. Acordava às 8h00, acionava o modo soneca do celular para 5 minutos de um repouso ilusório, ou seja, às 8h05 estava de pé e se espreguiçando. Em seguida, encaminhava-se para o banheiro, localizado do lado da cama, onde umedecia a superfície larga do rosto com um sabonete de erva doce para hidratar a pele, que nem era tão ressecada, mas fazia questão de lavá-la três vezes. Ao terminar de enxugá-la, os números digitais do seu relógio de pulso sinalizavam 8h18. Automaticamente, dirigia-se ao seu guarda-roupa, onde residiam as variadas vestimentas que possuía, porém, ela optava sempre pelo mesmo conjunto: camisa social de manga comprida, calça social azul marinho e sapato preto. 

Lívia não sentia nada. Antes de ir para a cozinha, encarava-se no espelho e aparava as arestas da sua aparência. 5 minutos de maquiagem e 4 penteando o cabelo, ainda sobrava 1 minuto para beijar suavemente o rosto do marido, que ainda dormia devido ao cansaço do emprego noturno. Quando era 8h30, estava preparando o seu café da manhã com pães sovados, manteiga, leite integral, biscoitos recheados e pães de queijo. Ainda havia 5 minutos disponíveis para uma caprichada higiene bucal. 

Lívia não era Lívia. Exatamente às 8h36, deixava sua casa, girava a chave de ignição do seu carro branco e partia em direção ao trabalho. Não se importava que o dia se repetisse da mesma forma que nos últimos anos, isto é, chegaria à empresa às 9h00, cumpriria o seu horário como qualquer funcionária obediente e às 18:02 estaria no banco do seu carro pronta para voltar a sua teia. Das 18h30 até às 22h00, Lívia gastava o tempo fazendo companhia para a TV, sendo lida por algumas revistas de moda e pensando na outra Lívia. Cadê os comprimidos? Às 22:00, a sombra do marido sempre chegava exausta e procurava conforto nos braços da cama. Enquanto isso, no seu âmago aracnídeo, Lívia desejava copiosamente descobrir uma traição.

Lívia, aos poucos, ressuscitava. Os antidepressivos não estavam surtindo tanto efeito e ela, às vezes, sentia. Era uma melancolia que a seduzia para o escuro do seu quarto. Lívia tentava se agarrar com todas as suas 8 patas na sua teia, composta pela redundância dos dias e pela gula, lá ela podia dormir profundamente. Porém, os fios da teia já não eram tão resistentes e Lívia se aproximava, cada vez mais, do chão.

Lívia não era uma viúva negra. Embora grande, ela era inofensiva, então, quando finalmente descortinou a infidelidade do parceiro, não despejou veneno, pois não o possuía em suas quelíceras. O que fez foi se libertar da sua teia e abraçar as consequências. Cessou os medicamentos que, há anos, reduziam-a a uma aranha letárgica, e permitiu reaver a verdade.

Lívia não acordou às 8h00, não lavou o rosto, não se vestiu e nem se maquiou para ir ao trabalho, não beijou ninguém e nem teve fome. Ela, apenas, levantou às 10h33. Havia uma semana que estava sem comprimidos, então o tempo já perdera a relevância. Resolveu escutar as vozes que insistiam em orientá-la para a parte mais obscura da sua mente. Lívia, olhe debaixo da sua cama! Olhe bem debaixo da sua cama! Olhe!. A enorme fobia do escuro a fazia hesitar, pois a vontade de explorar o desconhecido se embatia com o pavor da escuridão. Às 12h15, Livia se decidiu, respirou profundamente, desceu da cama, ajoelhou-se e inclinou vagarosamente a cabeça em direção ao chão. Seu suor era gélido e tremia como nunca. Em seguida, utilizou a lanterna do celular e visualizou uma entrada para o porão. Nem me lembrava que tinha um porão aqui! Rastejou-se em direção à entrada, que estava aberta, e desceu, com certa dificuldade, pelas escadas obsoletas. Naquele breu, só era possível enxergar a fresta de luz decorrente do celular, até que Lívia achou o interruptor e os resquícios de energia elétrica.

Então, Lívia encontrou Lívia, soterrada nas lembranças de fotos e diários empoeirados. Do fundo do seu ser, ela temia esse desfecho, pois não desejava que Lívia fosse real, que todos os pensamentos desconexos e tortuosos pudessem ter alguma relação com a menina do seu imaginário. Ela chorou intensamente até esvaziar os olhos e perceber que sua vida era apenas uma extensão oca do que já deveria ter terminado, há anos, após a morte de Lívia.

Este texto foi escrito ao som de Enemy Soundtrack (OST Online) - 01 Enemy

Por Vitor Costa

15 comentários:

  1. Esse desfecho é maravilhoso. Lívia se encontro, será?

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    1. Será?

      Obrigado pela visita Gyzelle, fico muito feliz de receber alguém tão talentosa aqui ;-)

      Beijos

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  2. Lindo texto....tomara que Livia renasça, afinal cada morte nos permite o renascimento...

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    1. Verdade tia, muito obrigado pelo comentário e volte mais!

      Beijos

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  3. A história tem um simbolismo forte Vitor. Ela jazia 'morta' no porão. Sua alma estava empoeirada, entregue ao abandono. Sua vida era vazia, desprovida e ela mal sentia. Agora ela se reencontrou!? Esperamos que sim. Para renascer nunca é tarde.
    Belíssimo conto meu amigo.

    Saudades daqui...

    Abraço!!

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    1. Muito Obrigado Alexandre! Muito interessante seus questionamentos acerca do desfecho do texto, agora cabe a cada um desvendar suas próprias interpretações rs

      Saudades de te ver por aqui!

      Abraços caro!

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  4. Tu domina como ninguém o texto em prosa. És um dos meus escritores favoritos, pode acreditar. Gostei do jogo de palavras em trono do nome lívida. Ótimo, Vitor!

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    1. Fico lisonjeado pelo elogio Fábio! Ainda mais vindo de um sublime esteta das palavras como você!

      Grande Abraço

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  5. Devo dizer que isso me impressionou. Enemy não foi apenas a escolha perfeita para esse texto como reflexo, como também a trilha sonora adicionou os ingredientes finais para passar significados além das palavras. Gostaria de destacar dois momentos;

    Iniciei a leitura sem a trilha, e a finalizei. Tive algumas perspectivas inquietantes, observei uma mente perturbada, afetada pelo clichê tradicionalista e sufocada por detalhes triviais, apesar de ter tido uma surpresa no final, vi simplesmente uma personagem aos prantos em lamentação.

    Em um segundo momento, meu caro Vitor, tu fizeste uma combinação esfíngica. A imagem da aranha me levou em uma viagem incondicional de volta as entrelinhas do filme, não sei se tu tinhas essa intenção, mas a simbologia unida a trilha me guiaram a uma interpretação totalmente diferente. Senti as tenções criadas na personagem como se fossem uma autocrítica, talvez com um pouco de sadismo, um prazer oculto sob os reais sentidos de certo ou errado, de medo e emoção. Sequer conseguir acreditar a tal vida cotidiana fosse real, e não um lapso de uma agonia ou temor.

    Vou parar por aqui, ou divagarei em ilustrações e pensamentos. Uma bela obra.

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    1. Fico extremamente feliz de saber que o meu texto te despertou tais sentimentos, interpretações, divagações...

      Na verdade, eu tinha a intenção de relacionar alguns aspectos do texto com o filme, que gostei imensamente, principalmente, em relação à metáfora das aranhas e das teias. Essa sua combinação esfíngica me impressionou, pois é um ponto de vista que eu nem tinha imaginado. Na verdade, a minha real intenção era simples e reside no jogo de palavras do nome Lívia. Porém, esses tipos de análises só enriquecem o texto. Muito obrigado!

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  6. OMGosh, Vítor. Que puta texto <3 (pra variar).

    Fiquei na agonia aqui tentando ligar as analogias e quem de fato era Lívia, se a mesma descrita no mesmo parágrafo ou já uma perturbadora personagem no meio do conto... Fiquei sem fôlego com o final, e confesso ter me identificado, creio eu que já tive dois ou três momentos que sua protagonista teve. Os percalços do autoconhecimento são mesmo uma boa peça do destino, e que maravilha é a escrita, que aproxima pessoas distantes. A cada dia te admiro mais e sinto que te conheço, tudo culpa de seus excelentes textos, meu amigo. <3

    Beijos ;*

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    1. Sempre um imenso prazer ler um comentário seu Hell.

      Adorei saber que despertei essas emoções em você, pois era exatamente isso que eu queria, não deixar que o leitor ficasse indiferente à história, que ele bolasse suas próprias teorias e interpretações. Que bom que causei essa identificação com você!

      Digo o mesmo Hell. Outro dia, estava caminhando pela cidade e avistei uma garota de cabelos azuis andando na minha frente, logo me lembrei de você e apressei os passos para ver o rosto dela, nunca se sabe né kkkkk

      Beijos amiga!

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  7. Boquiaberta com seu texto, tudo que a Hell elogia é realmente justo <3

    Parabéns querido!

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  8. Lindo texto desconhecido!! Muitos leitores indentificam-se e deleitam-se com a personagem hora aflita hora feliz com as descobertas de sua vida cotidiana e monótona!! Parabéns!!

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  9. Lindo texto desconhecido!! Muitos leitores indentificam-se e deleitam-se com a personagem hora aflita hora feliz com as descobertas de sua vida cotidiana e monótona!! Parabéns!!

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