terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Concurso de Beleza


Cena do filme "De Olhos Bem Fechados" de Stanley Kubrick

Repentinamente, Laura interrompeu aquele corriqueiro diálogo sobre as prováveis condições climáticas do dia seguinte e fitou-o com uma inusitada profundidade:

- Você  me ama, Ricardo?

A gravidade daquela pergunta o fez hesitar por alguns segundos e respondeu com a incerteza nos olhos:

- Sim... e você, me ama?
- Sim, te amo muito, mas parece que você não me ama da mesma forma.

Ele não soube disfarçar a sua irresolução, havia meses que estavam juntos e a verdade foi surgindo, paulatinamente, com o tempo.

- Por que você acha isso? - Perguntou como se não soubesse a resposta.
- Porque o mesmo afeto, zelo e atenção que dou a você, não me são dados de volta.

Era inevitável que esse instante chegaria, era a tendência pela falta de sinceridade consigo mesmo, pelo receio da solidão e pela necessidade sexual. Porém, ele não intencionava magoá-la, Laura era uma das pessoas mais interessantes que ele já conhecera, possuíam inúmeras similaridades que os tornavam um casal singular. Aparentemente, combinavam como poucos. Entretanto, esse era o latente problema de Ricardo: a aparência.

- Isso é impressão sua, ando muito ocupado com o trabalho e não tenho tempo para me dedicar mais a você como eu deveria - Recorreu à desculpa mais genérica que veio à mente.
- Ah... entendo... desculpe então. 

O frágil entendimento foi selado com um tépido beijo na face de Laura, seguido por um incômodo silêncio e pelas mãos, constrangedoramente, entrelaçadas. 

A inquieta verdade é que Ricardo enxergava em Laura, uma escada, cujos empoeirados degraus somente serviriam para alcançar os mais elevados e opulentos andares. Nem Ricardo e nem Laura eram providos de uma beleza midiática, ambos se encaixavam na estética da ampla maioria do mundo. Ele: alto, magro, olhos negros, barba irregular, pele marcada pela acne de outrora e levemente calvo. Ela: ligeiramente acima do peso, baixa, cabelos tão dourados quanto o seu sorriso, olhos castanhos e rosto largo. Todavia, ele queria muito mais, queria uma mulher que fosse tão linda quanto as modelos e atrizes que via na TV, internet ou nos outdoors da cidade. 

Embora soubesse e deglutisse todos os ensinamentos relacionados à efemeridade da estética e à relevância da beleza interior, havia um pertinaz desejo, isento de moralidades, que habitava o seu ser, a ambição de não pertencer à classe dos, fisicamente, conformados. Ele vislumbrava ser o cara comum com a mulher linda, ser a exceção perante o receio daqueles que não ousam se aproximar das "princesas", mesmo sabendo que suas chances não eram muito favoráveis.

Embriagado pela possibilidade de conquistar as mais deslumbrantes garotas que haviam passado ou que poderiam passar pela sua vida, decidiu terminar com Laura. Foram poucas palavras que, dos lábios trêmulos dela, saíram, porém todas carregadas de vastos sentimentos. Ela tentou dissimular, mas as lágrimas saíam sem avisos, a rejeição nunca havia ferido tanto. Ricardo estava sutilmente abalado, mas uma imensa sensação de liberdade prevalecia por dentro. 

Semanas depois, no percurso para o trabalho, Ricardo teve uma visão que demoraria a esquecer, Laura caminhando jubilosamente e de mãos dadas com um rapaz extremamente bonito como os galãs dos filmes ou modelos de revista. Ao perceber que se aproximavam, ele desviou o olhar, mudou a direção dos seus passos e pensou consigo mesmo: "Eu sempre soube que, no fundo, ela queria alguém muito mais bonito do que eu!".


Por Vitor Costa

16 comentários:

  1. Sensacional! De arrepiar.
    Parabéns
    Vinícius Piccirillo

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    1. Muito obrigado pelo elogio Vinny, é muito importante vindo de você ;-)

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  2. Adoro o jeito qual você escreve, as palavras que usa (do tipo "midiática" - fiz uma listinha aqui), a maneira com que a história flui nas linhas que tu pinta e ah, claro: os finais inesperados.
    Gostei pra caramba e acho que isso retrata a casualidade com que muitos casais tratam o amor. Certamente ele não era o amor da vida dela e ah, ela não o amava tanto assim.
    Parabéns Vitor, tu escreve demais. Grande beijo.

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    1. Que bom que gosta do meu jeito de escrever Carol, você sabe que também adoro o seu ;-)
      Gosto de usar algumas palavras "em estado de dicionário" rsrs fico feliz que isso te atraia também.
      Pois é, por trás do "Eu te amo", muitas vezes, esconde-se uma montanha de mentiras e desejos que são guardados para não magoar a outra pessoa.
      Que é isso Carol, você também escreve. Beijos!

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  3. Achei o final bem divertido! Sabe, o lance do Ricardo atribuir à ex-namorada as suas próprias falhas de caráter, como se fosse ela quem prezasse a aparência, ao invés dele próprio. Outra característica interessante do seu conto foi o realismo com que você pintou os pensamentos do protagonista: quantos e quantos caras pensam como ele? Quantas mulheres pensam como ele? A aparência é supervalorizada no nosso mundo. Mesmo que, todos saibam: não é ela que prevalece, no fim das contas.

    p.s: posso me dar a liberdade de uma correção? Ignore-me se eu estiver errada, mas acho que, na fala do primeiro travessão, a Laura quis dizer "Ricardo" ao invés de "Renato", não?

    Até logo! Jeito Único

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    1. Que bom que esse final te causou essa reação Lari, era com essa intenção que o elaborei, e demorei bastante para pensar nesse desfecho de modo que não soasse muito moralista ou previsível. Realmente, inúmeros pensam como ele, acho que todo mundo, ao menos uma vez, já imaginou ter ao seu lado alguém fisicamente atraente, a diferença é que uns se tornam obcecados por essa ideia e outros percebem que há coisas muito mais importantes na vida.

      p.s: muito obrigado por me fazer perceber o erro Lari, na verdade, eu não sei porque eu não continuei com Renato, a mudança para Ricardo foi imperceptível para mim haha Mas, de qualquer forma, valeu pelo toque. Já corrigi ;-)

      Beijos

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  4. Forte. Mas no fundo ele não a amava mesmo, não a ponto de agir assim. Ou pelo simples fato do ego sobrepujar quaisquer sentimentos.O desejo febril de, no fundo, querer alguém mais belo do lado. Ele se importava demais com o externo, era primário, quando isso na verdade é secundário. Por isso, ele não a amava. Quem ama, ama primeiro o lado de dentro. O de fora ê bônus. Ela talvez amasse. Que pena. Mas muitos agem assim como ele. Lamentável.

    Saudade daqui meu caro. Entrei de férias da facul e voltarei aos poucos por aqui.

    Abração!

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    1. Que bom recebê-lo por aqui Alexandre, seus comentários são sempre enriquecedores.

      Ah boas férias e volte sempre amigo!

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  5. Que texto reflexivo, Vitor! Retrata bem como os relacionamentos atualmente podem ser fúteis, e quando a boa aparência das pessoas, mesmo sendo efêmera, é mais prezada que o seu interior.. Muito bom!

    Em breve vou assistir De Olhos Bem Fechados.. há tempos estou querendo ver esse filme, principalmente por ser uma obra de Kubrick.

    Um grande abraço

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    1. Obrigado pelo gentil elogio Vane! Eu quis mostrar esse lado superficial que impera na sociedade.

      Assista sim, é um filme que vale a pena. É provocativo, tenso, profundo, visceral... Na minha opinião, é um dos melhores do Kubrick e isso já é um enorme feito dentre tantas formidáveis obras dele.

      Beijos

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  6. Nossa, que texto! <3 Eu meio que consigo me ver no Ricardo, porque eu já tive um namorado que estava lá só pra preencher o espaço, não era o que eu queria, não chegava perto, mas era o que tinha, então eu fiquei com ele por um bom tempo, mas eu nunca tive pensamentos como os dele, de querer alguém que parece celebridade, sabe? No fim encontrei um guri que tocava numa banda, eles não eram nem grandes, mas foi uma coincidência porque eu tenho certeza que teria me apaixonado por ele mesmo se ele não tivesse banda. Ele passa longe de ser um cara de tv, mas eu amo ele mesmo assim, risos.

    O pior de tudo é a reação de Ricardo ao ver a moça com o novo namorado. Ele julga as pessoas como se fossem todas iguais a ele, sendo que talvez foi só uma coincidência que ela encontrou esse cara novo, risos. Mas a verdade é que as coisas boas vem quando menos se espera, é clichê mas é real. :)

    Percebi que você gosta de filmes (jura???). Já viu Womb (Ventre)? Tô pra reassistir, gosto muito. ♥

    Beijinhos ;*
    Phantasmagorik

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    1. Que interessante sua história Maria, fico feliz por você ter encontrado o amor na forma desse rapaz aí, felicidades pra ti ;-)

      Que bom que gostou do texto. Ricardo, assim como muitos, tem uma visão limitada das coisas rsrs

      Eu não gosto de filmes, eu apenas amo filmes haha Não conhecia esse filme, mas pela sinopse me pareceu muito instigante, já coloquei na minha lista Maria, obrigado pela dica ;-)

      Beijos

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  7. Ninguém ama o outro na mesma medida, da mesma maneira, exatamente igual. Há até os que amam pelo dois. O amor, a paixão são cruéis, irracional, uma equação de difícil conclusão.

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    1. Concordo plenamente com o seu lúcido comentário Fábio, confunde-se muito o amor com interesse.

      Abraço

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  8. Nossa, estou aqui de boca aberta com seu blog, a partir de hoje, quero acompanhar sempre.
    :)
    Beijo Grande!
    www.estavalendoedai.blogspot.com.br

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    1. Muito obrigado Jeniffer :-D Volte sempre!!!! Agradeço sinceramente a tua admiração.
      Beijão

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