quarta-feira, 10 de julho de 2019

A Formiga e a Folha

Pôster do filme "Medianeras" de Gustavo Taretto

Em uma daquelas belas manhãs de inverno, onde a luz solar se recusa a esquentar e qualquer penumbra reserva uma brisa gélida, uma formiga chama a atenção de olhos invisíveis. Estática no meio do asfalto de uma rua pouco movimentada, ela carrega uma folha, resquício de outono, com um esforço muito além da aparência. A folha é imensa perto da formiga.
Seu objetivo é nítido: chegar ao outro lado da rua. O trajeto, porém, não é nada acalentador. Embora só precisasse seguir em linha reta até o seu destino, que corresponde a uma distância aproximada de 1 metro, a formiga não tem pernas humanas, tem apenas pernas, corpo e cabeça de formiga. E tal como o inseto que é, agiu conforme seu instinto. Precisa levar a folha e isto basta. Porém, de todas as formigas e folhas caídas do bairro, essa se diferencia por estar totalmente sozinha em meio a um oceano cinza intimidador, onde, a qualquer momento, poder-lhe-iam ceifar a vida. Um pneu indiferente ou até um pé distraído, cruel – quem iria ligar para uma formiga morta – ninguém se importa, a não ser a própria formiga e sua destreza inexorável. 
No decorrer do caminho, curiosamente não há percalços comuns, ninguém passa pela rua, nenhum carro apressado, nenhum passo indiferente. Como se a realidade ao redor tivesse congelado para contemplar aquela maratona da natureza, porém sem gritos de apoio, sem aplausos, só o silêncio como torcida e o tempo como juiz. A formiga, no entanto, mesmo sabendo que só precisa ir reto, hesita, confunde-se, dá meia volta, desnorteia-se absolutamente sozinha. Irresoluta, cessa seus exaustivos movimentos por um breve instante, emperra em um trecho da rua, parece ter se esquecido de onde veio e para onde está indo, porém, não se sabe se por escolha aleatória ou instintiva, opta por prosseguir o caminho no mesmo sentido anterior. Cambaleando, deixando a folha fugir de seu domínio inúmeras vezes, a formiga insiste em seu propósito imediato, inalienável. Inconcebível seria completar o percurso sem a folha, já não são seres separados pelo acaso. Aquela formiga encontrou justamente aquela folha. Dentre tantas folhas e formigas, não há outra combinação como aquela em pleno sol de inverno sob um território tão hostil.
E assim, com passos de formiga, sem afobação ou desespero, ela chega ao fim do asfalto, onde há um emaranhado de galhos, misturados com folhas secas e outras formigas que ali transitam. Ao contrário do que se supunha, a rua era só o começo. Repentinamente, as rotas se diversificam, filas de formigas carregando folhas de distintos tamanhos se formam em várias direções. Os trajetos se encontram e desencontram em veredas repletas de obstáculos imprevisíveis. A formiga, feito máquina programada, não se intimida, ao contrário, teima contra a própria natureza que parece apreciar aquele sofrimento, apostando tudo na sua desistência. Enquanto outras formigas já estão muito mais avançadas e na companhia de folhas maiores, ela permanece tentando, resiliente, arredia, no seu ritmo, no seu tempo.
Se a formiga e a folha alcançaram seus derradeiros destinos? Não se sabe. O narrador foi embora. De inspiração renovada, deu-se por satisfeito.

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