sábado, 11 de abril de 2015

A Maça

Cena do filme "Noé" de Darren Aronofsky

Quem nunca quis algo proibido? Algo que subvertesse as convenções da sociedade e desafiasse a ordem moral das pessoas.

Há muito tempo, eu quis, isto é, a minha versão adolescente com cabelo e sardas quis. Hoje, o proibitivo não me desperta mais fascínio, pois, em um mundo cada vez mais insano, o ilegal se banalizou. Envelheci cedo demais. Estou com 60 e eu mal me lembro das minhas brincadeiras de infância, dos meus amigos de escola e de como era ser adolescente, porém, uma figura permanece indelével na minha memória senil: a minha saudosa vizinha da frente.

Morávamos em uma pacata casa, eu, meu irmão e meus pais. Naquela época, não havia essas grades nas janelas, essa abundância de alarmes, essa sensação latente de insegurança, como se fôssemos prisioneiros em nossas próprias residências, não havia nada disso. Nosso portão de madeira era pequeno e cercado por um muro menor ainda. A parede da nossa casa era desbotada e a nossa rua nem era asfaltada ainda. Eu não me importava com a pobreza, afinal, eu tinha a vizinha para contemplar nos finais de tarde, quando eu voltava da escola ansioso por aquele momento. 

Vamos ao que importa antes que eu me esqueça: A vizinha. Mechas douradas que reluziam à luz do sol se pondo, olhos da cor do mais puro mel, um rosto desenhado nas medidas certas, combinando com o nariz, as orelhas e a boca... ah que boca! Escondia um sorriso desestruturante, de transformar qualquer homem casado em amante. E o corpo então? abençoado com curvas simétricas e totalmente naturais. Por morar sozinha, a vizinha era assunto frequente das donas de casa do bairro. "Como pode uma mulher de 25 anos não ter marido e morar sozinha." Mas, ela podia e fazia o que queria, sem receio de perder seu lugar no Céu.

Desde que nasci, mamãe sempre quis que eu fosse padre. "Esse meu filho ainda vai me dar muito orgulho como padre", dizia para toda a vizinhança. Quando tinha por volta dos 16 ou 17, a ideia de uma vida celibatária já estava sendo aceita por mim, porém, quando a vizinha aparecia, tudo mudava, ela era meu fruto proibido e me despertava pensamentos impuros. Eu tinha muito medo de pecar e ir direto para o Inferno.

Um dia, voltando da escola como de costume, encontrei a vizinha sentada na varanda da sua casa vermelha com o seu vestido branco ao vento, parecia pensativa e triste. Nossos olhares, inicialmente dispersos, cruzaram-se por um momento, em um daqueles instantes que ecoam para o resto da vida, sabe?. Ela me encarou com os olhos úmidos e a maquiagem borrada, abriu aquele conhecido sorriso e acenou em minha direção. Eu, um pobre garoto, nada pude fazer, além de acenar de volta e abrir um sorriso tão largo como breve. Entrei apressado em casa, o coração socava o peito e os pensamentos se misturavam criando uma bagunça sem sentido. Era a tal da paixão, da qual minha mãe falava que eu não podia sentir por ninguém, além de Deus.

"Que Deus me perdoe, mas vou tomar alguma atitude em relação à vizinha", pensei. Na semana seguinte, eu fui, sorrateiro, até a casa dela, chamei-a na varanda, ela me atendeu e eu disse, sem hesitar, que estava apaixonado por ela e que não queria ser padre, só queria ficar com ela, casar com ela. Nunca tinha visto a vizinha rir tanto na vida, mas era um riso doce, não de deboche. Por trás da frase: "Você é muito novinho para mim, meu bem!", havia uma semente de esperança que seria colhida pelo tempo. 

Eu esperei pacientemente, fingi ser padre, fingi que acreditava na Bíblia, fingi que eu era santo e fingi não me importar com os namorados, maridos e amantes dela, até o dia em que a vi adentrar às instalações da igreja, 5 anos depois daquela ocasião, com o mesmo esplendor, e vir se confessar a mim por meio de uma voz tristonha: "Padre, eu pequei, fui infiel, fui traída, fui usada e usei. Padre, eu sei que eu não mereço ir para o Céu, mas eu só queria um homem que me respeitasse, que me amasse de verdade. Não recebo uma declaração de amor desde que um garoto, uma vez, me disse que me amava e que queria casar comigo. Fico imaginando que ele deve ter sido o único que me amou sinceramente." Não consegui dizer nada, abri a pequena janela do confessionário, revelei-me para ela. "Eu sou esse garoto, lembra-se? E eu ainda te amo".

Larguei tudo para ficar com ela, inclusive Deus. Casamos, fomos felizes, tristes, amigos, amantes, apaixonados e condenados. 

Não há muito mais o que dizer, exceto pelo fato de que eu nunca me declarei para a vizinha, o sorriso reluzente e o aceno foram minhas últimas lembranças dela. No dia seguinte, ela se mudou, evaporou do bairro como a chuva que refresca e depois dá lugar a poeira. Ela foi embora e levou consigo minhas esperanças de uma vida diferente, a vida que eu poderia ter escrito.

Porém, conhecendo o jeito da vizinha, ela iria preferir o primeiro final. Ela não iria querer ver as lágrimas deste velho padre, ela iria sorrir e secá-las com o seu brilho.


Vitor Costa

16 comentários:

  1. Engraçado, que seu texto começa com uma interrogativa... mas é justamente a sua afirmação, (que vem depois), que faz-me interrogar: mas a nossa sociedade atual possui ordem e convenções para termos a rebeldia de subverter? Está tudo tão bagunçado, tão caótico, tão desavergonhado (basta ver o quadro político mundial), que ser subversivo é justamente não pisar na grama... Basta ver também quando o nosso país condecora com medalhas de honra ao mérito, quem devolve uma mochila intacta encontrada no aeroporto... (isso sim, era para ser algo normal na terra do lema "ordem e progresso", e não é por quê?)
    Enfim...
    Vamos ao que importa: A história da vizinha.
    A que deve ser a tal maçã proibida...
    Bem, vamos ser honestos aqui entre nós, num mundo moderno onde tudo é permitido, onde liberdade e libertinagem andam de mãos dadas numa boa, onde a relatividade chegou de uma forma que espantaria mais ainda os cabelos de Einstein, e onde cada sandice sobre-humana é vista como normal (é só ver os discursos da Dilma), poder ter a honra de olhar a volta, e encontrar algo pra se chamar de proibido é a verdadeira subversão da moral e dos bons costumes contemporâneos...

    Aleluia, o mundo tem salvação.
    Também eu não quero ver lágrimas na face deste velho padre.

    Meu Olá
    =)

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    1. "onde a relatividade chegou de uma forma que espantaria mais ainda os cabelos de Einstein" hahaha Seu comentário inteiro foi brilhante Priscila, como sempre realizando análises profundas e alternativas acerca dos textos.

      Naquela época, o proibido tinha um gosto desconhecido né

      Beijoos

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  2. Verdade, o proibido sempre encanta aos olhos, mas desgasta a alma!!

    beijoss

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    1. Realmente Talita, precisamos ter discernimento para saber o motivo do proibido e ver se há algum fundamento na proibição de determinada atitude.

      Beijos

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  3. Gostei principalmente do final, um amor que ficou só no "querer" mesmo, nunca pôde realizar-se. Ir contra tudo e todos em favor do amor, mesmo aquele proibido, é apoiado totalmente por mim. Vai fundo haha

    enquantotipico.blogspot.com

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    1. Obrigado pelo comentário Edu. Quantos possíveis amores não morrem no campo das hipóteses né?

      Abraços

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  4. Bom dia Vitor..
    e sempre vem a tal da maça que os anos da história tanto já falaram..
    tudo esta em nós...
    o bom e o ruim.. o atrair e o repelir..
    somos humanos, temos o direito de errar, mas saber reconhecer o erro..
    erros e acertos vão por toda a vida..
    mas tb não dá pra não provar o tal proibido né..
    abraços

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    1. Olá Samuel, que bom recebê-lo por aqui após um tempo!! Muito interessante o que disse, principalmente: "somos humanos, temos o direito de errar, mas saber reconhecer o erro.." e em relação a provar o proibido, acho que isso é relativo, compete a nós, investigar as razões que tornam algo proibido e analisar se há alguma plausibilidade nisso.
      Abraços poeta!

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  5. Um final duplamente surpreendente... Isto porque, acredite: tanto o que de fato aconteceu quanto o que poderia ter acontecido me surpreenderam, haha!

    São tristes os amores que não dão certo. E são comuns, também... Porque amar esse tipo de amor não depende só de um, mas de dois mais as circunstâncias. O padre do texto vive, de certa forma, incompleto: vazio da confissão que não fez, da namorada que não teve, da ilusão, da falta de vocação.

    Ótimo texto!

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    1. Hahaha que bom que te surpreendeu Lari, acho que você já percebeu que adoro finais inesperados kkkk

      Excelente comentário querida, há um vazio imensurável que habita o padre, o vazio de uma vida que não o fez plenamente feliz e que o faz ficar preso no passado.

      Beijos

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  6. MAGNÍFICO, você é sempre magnífico, Vitor. Seus desfechos são sempre, repito, SEMPRE sensacionais. Eu sabia, sabia que não iríamos ter um final feliz.
    Gosto do que você escreve porque é sempre real, ou pelo menos mais real do que estamos acostumados a encontrar nos cinemas e nos livros - e você deve saber disso melhor do que eu, não é?
    A gente sempre tem um clichê final feliz, as coisas seguem sempre o mesmo rumo infeliz.
    Parabéns por quebrar as expectativas. Beijo.

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    1. MUITO OBRIGADO Carol, não me canso de repetir que seus comentários são sempre revigorantes e necessários. Em relação aos desfechos, eu acredito que em uma estrutura narrativa, seja no cinema ou na literatura, tanto o início quanto o fim são as partes essências para capturar o espectador/leitor e deixá-lo como uma sensação inquieta ao final. Não que o meio não seja importante, logicamente é, porém sem um início e um fim contundentes, o texto se enfraquece como um todo.
      Que bom que gosta desse quebra de expectativa Carol!!!
      Beijos

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  7. Mas, Carol, eu fiquei frustrado, cara mais devagar, poxa... Como é, a vizinha, na realidade, evaporou e ele ficou a ver navios, a chupar o dedo, a ruminar o que podia ter sido se não fosse do alto de seus irrecuperáveis 60 anos. Tava achando muito perfeito, muito linear, muito bom pra ser verdade. Memorável, Victor, como tudo que escreve, de uma elegância e qualidade notáveis. Texto delicioso, nostálgico.

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    1. Poxa Fábio, para seu desgosto e do padre, evaporei a vizinha hahaha
      Era para ser uma crônica de costumes irreverente, porém, minha inalienável tendência ao ceticismo, fez-me mudar o final rsrs
      Grande Abraço Caro

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  8. Que belo conto, Vitor.. um dos melhores e mais originais que já li por aqui!
    Achei interessante a forma como flui a narrativa.. E confesso que fui enganada por este desfecho, achando que haveria um final feliz.

    Tenha uma boa semana..
    Um grande abraço

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    1. Obrigado pelos seus comentários sempre concisos e inteligentes Vane ^^
      Eu adoro nadar contra a corrente haha
      Tenha uma ótima semana também e um grande abraço

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