Pôster do filme "Cosmópolis" de David Cronenberg
"Você tem 10 minutos."
O pranto cessou, um silêncio penetrante dominou a sala, Kevin fitou o relógio com os olhos secos de perplexidade, não sabia mais o que fazer ou que dizer para contornar o inevitável.
Avistou a paisagem da janela com a frustração de nunca ter reparado naquela pintura viva, era a dança das árvores com a brisa, as folhas balançavam delicadamente e pareciam convidá-lo a participar do momento, queria poder dizer às bailarinas do ar:
Um sopro de realidade levou aquele breve instante, que durou uma vida inteira, para as veredas de sua memória tão vívida. Mesmo na certeza da morte, ele não deixava de pensar nela, a mulher que foi vítima de seu egocentrismo característico:
"Ah Lara, o meu arrependimento é do tamanho do mundo."
Dizem que momentos antes da morte, a vida inteira passa diante dos nossos olhos, mas para Kevin, tudo o que ele enxergou na sua mente foram cenas de sua outra vida, aquela que ignorou, que não teve coragem para lutar. Possibilidades de felicidade o torturavam impiedosamente. E quanto mais profunda era a escavação do seu passado, tentando encontrar o ponto onde se perdeu de si mesmo, mais encarcerado se via às escolhas precipitadas da juventude.
Acorrentado ao pé da estante de ouro ao lado do sofá de couro que havia gastado tanto para adquirir, Kevin analisou a imagem daquele fantasma da morte. Lá estava ele, sentado na cadeira de marfim, braços cruzados, uma pistola semiautomática prateada fixa à cintura, óculos e boné escuros, uma barba rala e grisalha, camisa azul-escuro, calça jeans desbotada, assemelhava-se a uma estátua alheia a passagem do tempo. Meticuloso, usava luvas e silenciador. Indubitavelmente, era um exímio profissional.
A máquina travestida de homem estava estática, porém os ponteiros do relógio da sala se moviam indiferentes ao destino de Kevin. E ele já havia utilizado toda sua eloquência, mas os seus discursos tão bem articulados se tornaram cinzas perante o código de conduta do assassino. Do mesmo modo, ele já havia oferecido o dinheiro que possuía e o que não possuía, todos os bens que tanto valorizava, mas que não podiam salvar sua vida.
Entregue às mãos do acaso, Kevin se confortava com a quietude da morte iminente. Faltavam somente 3 minutos e, repentinamente, uma corrente ininterrupta de pensamentos invadiu sua mente:
"Eu nunca fui exemplo para ninguém, injustificavelmente eu sempre odiei as pessoas e, sobretudo, a mim mesmo, eu quis encontrar sentido para a existência em ideologias hipócritas. Do topo da minha auto-repugnância, enxerguei a iniquidade em mim e refleti no mundo das coisas, porém, algo aconteceu e fui, imperceptivelmente, tornando-me absorto ao meio que eu desprezava. Anestesiado pelo poder, fui me distanciando daquele anseio em me entender, assim, tornei-me tão insípido quanto aquele luxuoso relógio que ornamenta minha parede e que combina perfeitamente com a minha persiana de cores efusivas. As coisas que me definem, que me afastaram de Lara, mas, aproveitando o ensejo, será que era amor o que ela me despertava? Ou seria apenas um alívio cômico para a tragédia da vida? Enfim, eu mereço esse desfecho por não aceitar a leviandade da sociedade? Mas, eu já estava praticamente reprogramado, não faz sentido. Logo, quem poderia ter contratado esse covarde para executar alguém que já estava entregue ao cemitério de gente viva?"
Esta era a única resposta que importava para Kevin e, no decorrer daqueles derradeiros minutos, realizou uma lista mental, contendo os nomes de todos que, ocasionalmente, poderia ter maltratado, magoado, menosprezado, porém, percebeu que era uma lista oca, pois, apesar de seu misantropismo intrínsico, ele nunca havia prejudicado ninguém na vida, ao contrário, o seu disfarce era muito convincente, todos que conhecia o consideravam simpático e íntegro:
"Então quem poderia ser? Lara? Não, pois quando nos despedimos havia uma mansidão redentora no seu olhar que amenizou levemente a minha culpa pela negligência do amor, pela insuficiência do amor. Meu chefe? Colegas de trabalho? Meus raros amigos? As faces inexpressivas da minha fase boêmia? Nada que justificasse a morte de uma máquina."
Estava na hora, aqueles 10 minutos de catarse despudorada tinham escorrido pelas suas mãos metálicas. O espectro insensível encarou o relógio, levantou-se da cadeira, deu seus passos em direção a Kevin, que estava friamente desolado, preparou-se para empunhar a arma e executar o serviço:
"Só me diga uma coisa, quem te contratou? Que diferença fará se você me disser? Minha vida já é sua. Só me dê essa informação para que eu possa morrer sabendo o motivo."
Sua voz repleta de serenidade provocou certa surpresa ao assassino, tão habituado ao desespero irracional das suas vítimas. No seu código de conduta não constava a proibição de mencionar os nomes dos seus clientes, então, munido por uma indiferença pérfida, permitiu a Kevin saber quem havia encomendado a sua morte:
"Em tantos anos de sangue derramado, é a primeira vez que vejo a vítima ser o cliente. Eu não me importo que você seja o seu próprio pesadelo, quando você me contratou havia a certeza do suicídio no seu olhar, mesmo que você não se lembre, pode acreditar que havia. Não há mais tempo para lamentos ou arrependimentos, despeça-se de sua vida ordinária."
Kevin, atônito, mal era capaz de respirar, até que a visão de todos aqueles comprimidos, um mundo de entorpecentes em cima da sua mesa de mármore, causou-lhe a epifania dos mortos.
E foi assim que Kevin finalmente acordou e nunca mais adormeceu novamente.
Vitor Costa
Vitor Costa
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