quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Nós


Eu ainda tento te encontrar pelas estradas arruinadas do cotidiano, mesmo que seja um ledo engano, uma fantasia que se esvai ao cair do pano, um delírio instantâneo... Eu ainda insisto no misto entre sonho e realidade, um meio termo, um ponto comum que possa saciar minha insaciedade. Um amor que me ame pela metade, que me encha de vontade de me dividir, mesmo sendo indivisível. Não quero ser todo seu, deixe-me uma parte intacta, onde eu possa respirar meu próprio ar, onde eu seja capaz de me suportar em silêncio, conhecendo cada partícula que me compõe, cada forma que se opõe ao que sou, cada crise existencial que me caracteriza, cada conflito interno que me descava, que me aproxima da tão complexa aceitação. 

Eu quero me despir pra você, abrir o entulho de segredos que me pesa o caminhar. Quero que entenda que não sou seu e vice-versa. Não te tenho, não te pertenço, somos minúsculos seres em busca de algum contato, não somos coisas que possam ser possuídas, embora haja muitas pessoas coisificadas e coisas personalizadas, mas não somos assim. Só quero uma parte sua, àquela que esteja disposta a desfrutar da nossa companhia, do nosso momento líquido, a compartilhar planos insanos, fetiches obscuros, desejos subversivos... E ainda manter nossa identidade intacta, como moléculas solitárias que se esbarram de vez em quando só para lembrar que a felicidade pode ser potencializada em conjunto, ou não. Te deixo livre porque te amo e para que se ame de verdade. Mas, por favor, quando vier pra cá, nesse espaço em mutação, queira estar comigo sem obrigações, sem sobrecarregar o amanhã nem os nossos sentimentos, sem inflar expectativas, sem comunicação subentendida, sem afeto por convenção... Podemos ser mais, muito mais do que apenas mais um casal que se reproduz por medo da inevitável extinção, muito mais do que marido e esposa que se percebem completos estranhos enganados pela carência, muito mais do que amantes que transam para aliviar suas respectivas tensões mal resolvidas, muito mais do que homem e mulher que se unem por instinto animal, muito mais do que duas pessoas que se vestem de desejos alheios, que planejam a vida dos outros, que vivem como confortáveis impostores... Podemos ser muito mais do que isso, acredite! Podemos ser apenas NÓS na mais rara plenitude. 

10 comentários:

  1. Vitor, eu nunca vou me cansar de dizer que você escreve muito bem. Tudo flui, instiga, envolve.
    Fiquei comovida.

    Lindo texto. Espero viver um amor assim um dia...

    ResponderExcluir
  2. Muito obrigado, Carol! Muito gratificante vê-la por aqui! Saudades! 😊😊😊

    ResponderExcluir